quinta-feira, agosto 19, 2004

Post-Novela-Policial-de-Antigamente II

Estava cansado daquilo. Mais uma morte, mais uma história. Andava se sentindo muito incomodado com o seu trabalho. A cada novo caso, mais vontade ele tinha de fazer outra coisa. O que lhe perturbava não era o tom funesto, ou o ar denso dos ambientes de morte que era obrigado a freqüentar. Nem mesmo, as aberrações que se deparava com freqüência, como corpos mutilados, ou em estado de decomposição o incomodava. O que lhe afetava mortalmente era o tratamento espetaculoso que era obrigado a dar a esses acontecimentos. Enquanto repórter policial, era sempre compelido a procurar o ângulo certo – nas fotos e no texto – para que mais jornal pudesse ser vendido. Esse era o seu trabalho, levar a público a tragédia privada. Usar as tintas certas para pintar aqueles quadros tristes.

Para ele, era um absurdo, que em pleno 1962, a imprensa ainda se comportasse dessa maneira. A manipulação da notícia com fins comerciais era algo bastante incômodo para ele e especificamente na sua área de atuação, era algo bastante comum. O fascínio das pessoas frente à morte era algo que o chocava. No fundo, ele não sabia o que era mais mórbido: a imensa massa de leitores que compravam jornal para ler este tipo de notícia, ou quem as difundia.


Chegando à rua, não teve dificuldades em localizar a casa. A quantidade de viaturas, policiais e curiosos em frente aquele vistoso sobrado não deixava dúvidas: esta noite, ali seria o seu escritório.

Não demorou para que o Capitão Ernesto Sanches, homem corpulento de quase dois metros de altura, batesse nas suas costas:

_ Rico! Você já chegou? Como é que vocês conseguem fazer isso? Daqui a pouco, a imprensa vai chegar antes da polícia... Por que vocês também não aproveitam, e levam o que sobrou daquela mulher, para o IML?
_ Boa noite prá você também, Ernesto... Mas que diabo, será que não existe mais um mínimo de cordialidade nessa cidade?
_ Sem cinismo, Rico. Tem um amigo meu que diz...
_ “Que o cinismo é pior que a arrogância.” Eu sei, Ernesto, eu sei... Mas o que aconteceu por aqui?
_ Aparentemente não tem mistério. O sujeito, dono de uma metalúrgica, chegou mais cedo em casa e flagrou a esposa com outro. Deus cinco tiros e várias facadas.
_ E o amante?
_ Fugiu. Ainda não sabemos nada sobre ele.
_ Você disse que ele deu cinco tiros?
_ E o IML vai dizer quantas facadas, mas foram pelo menos umas dez.
_ Estranho... cinco tiros... A arma não tem seis?
_ Mas você acha que o sujeito nessa situação vai ficar contando os tiros?
_ Exatamente, não vai. Ele atira até acabarem as balas... Por que ele deixou uma?
_ Ah, lá vem você de novo inventando histórias...
_ Esse é o meu trabalho.
_ E o meu é organizar esse furdúncio. E você, não encoste um dedo em nada, tá entendendo? Eu quero você invisível por aqui, estou sendo claro?
_ Claro, chefe. Como sempre, você nem está falando comigo.
_ E, Rico:
_ O que?
_ Vê se faz essa barba, pelo amor de Deus.

continua>>